domingo, 5 de junho de 2011

A difícil arte de perder

Uma arte
A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

            --Elizabeth Bishop, tradução de Paulo Henriques Britto--

Perder. Palavra dura, doída. Até suas sílabas arranham a garganta. É difícil lidar com perdas, em qualquer idade que ocorram. Amo este poema, porque trata do assunto de uma forma quase trivial. E não é que é mesmo? Tudo se perde, em diferentes momentos da vida e, mesmo assim, é complicado para quem sofre. Nunca se acostuma a ela.
Interessante como a poeta repete em cada verso “nada disso é sério”, “não é nenhum mistério”, quase como forma de se convencer de que perdas são naturais.

No princípio, as coisas mais banais, que nem sentimos quando se vão, um guarda-chuva, uma chave. O tempo gasto fazendo nada. O Rio de Janeiro ganhou muitos guarda-chuvas por minha causa, esquecidos em táxis, ônibus, até salas de aula.

Tantas coisas perdi. Talvez a primeira dolorosa tenha sido a infância, a inocência das brincadeiras, o dia todo me divertindo no play e só subir para jantar. Polícia e ladrão, queimado, pique-parede, casinha. Perda convertida em saudade. Gostoso de lembrar o rir-à-toa, os ataques de bobeira na escola, até a encheção de saco dos professores.

Mais tarde, jovem adulta, perdi um amor, foi barra. Por muito tempo, senti como uma incompletude em mim. Acostumei-me depois disso a rir chorando (ou a chorar rindo?). Até que a dor se acomodou e voltei a me sentir inteira.

Uma querida amiga minha sofreu duas perdas mui pungentes. A morte da mãe, há alguns anos, e a da avó, semana retrasada. Escreveu um lindo texto em seu blog, talentosa que é com a palavra poética. Genialmente, ela diz “conto desconsolos a mais com copos de arroz a menos”. Não imagino a dor pela qual ela passou, mas sei que vou passar.  
E, assim, apesar da dor, todos renascem após cada episódio inesperado.
Aprende-se a suportar a ausência.
E tanto mais se perde. Emprego, cidade, amores, ilusões, sonhos.

Até a perda última, para a qual (quase) ninguém está preparado: a morte, única certeza com a qual nascemos. Lembro até o filme “O Auto da Compadecida” com o discurso tragicômico do personagem Chicó sempre que alguém falecia: “Ele se encontrou com o único mal irremediável, aquilo que é marca da nossa estranha existência sobre a Terra, que junta tudo que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.

Não tenho moral do texto, não tenho palavra de consolo. Até porque o consolo da perda não está em palavras. Está no silêncio, no tempo, num abraço, nas lágrimas. O conforto é que, como diria Bishop, “não há nenhum mistério”. A pessoa perde, sofre, sobrevive, renasce. Talvez a grande vantagem da perda seja isto mesmo: o renascimento.

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Este obra de Rita Cammarota, foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.