sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A dor é tão velha que pode morrer (Chico Buarque)

Bom Tempo
Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo

Do duro toda semana
Senão pergunte à Joana
Que não me deixa mentir
Mas, finalmente é domingo
Naturalmente, me vingo
Eu vou me espalhar por aí

No compasso do samba
Eu disfarço o cansaço
Joana debaixo do braço
Carregadinha de amor
Vou que vou
Pela estrada que dá numa praia dourada
Que dá num tal de fazer nada
Como a natureza mandou
Vou
Satisfeito, a alegria batendo no peito
O radinho contando direito
A vitória do meu tricolor
Vou que vou
Lá no alto
O sol quente me leva num salto
Pro lado contrário do asfalto
Pro lado contrário da dor

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
Um pescador me confirmou
Que um passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Ando cansado da lida
Preocupada, corrida, surrada, batida
Dos dias meus
Mas uma vez na vida
Eu vou viver a vida
Que eu pedi a Deus

                                            --Chico Buarque—

Só porque hoje eu estou feliz. De uma alegria que não se explica. Só por estar viva. Por ter uma família que me ama, amigos, uma pessoa especial ao meu lado.
Com vontade de cantar, porque gosto do meu trabalho hoje. Porque luto por um melhor amanhã. Porque finalmente, estou cuidando de mim e pensando em mim para isso.

Porque quero sorrir e não chorar, mesmo que nada extraordinário tenha acontecido. Feliz, como as pessoas merecem ser. E eu também.

terça-feira, 5 de julho de 2011

O R U? (Quem é você?)

Esquadros

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!

Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção
No que meu irmão ouve
E como uma segunda pele
Um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Ai, Eu quero chegar antes
Prá sinalizar
O estar de cada coisa
Filtrar seus graus...

Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome...

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm
Para quê?
As crianças correm
Para onde?

Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...

Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?

                                   --Renato Russo e Adriana Calcanhoto—(acho)

Esta é a música que nomeia o blog. Escolhi-a porque acho que me define muito bem, minha curiosidade, minha vontade de ver novas cores, novas culturas, países, pessoas. Amo viajar e não me sinto pertencente a nenhum país. Sou brasileira, aqui moro, mas ao visitar qualquer lugar, sempre questiono “e se eu fosse francesa, belga, americana? E se eu fosse indiana ou japonesa?”

Penso como a minha visão de mundo mudaria se eu tivesse nascido em cada um desses lugares, se as cores que eu veria seriam as mesmas. Meus valores. O planeta é tão grande, tão cheio de tudo e impossível de abraçar, de sentir todos os cheiros, de viver todas as experiências. Posso viver de cada lugar só um pouquinho, provar um pouquinho.

E as línguas? Se eu pudesse, falaria todas com a mesma fluência. Umas tonais, outras não. Cada uma soa diferente, mas cada qual tem sua música própria. Tão belas todas.

Vivi dois meses em Brighton, Inglaterra. Lá havia estudantes do mundo inteiro. Conheci tanta gente, com vidas, culturas e caminhos tão diversos. Tão rico e interessante. Queria passar cada dia da minha vida em uma cidade diferente, só para saber como é. E mesmo assim, jamais poderia ser uma nativa ou pensar como tal. Seria uma gringa. Que pena.

A esta vontade de pertencer a todos os lugares, somo a minha outra metade, que quer criar raízes e ficar quietinha. Sou um paradoxo, por isso escolhi a poesia “Traduzir-se”, do Ferreira Gullar como a primeira do blog. Também me define horrores.

Hoje, em vez de ver o paradoxo como difícil de aceitar, vejo como parte de mim e adoro. Adoro a complexidade de ser quem eu sou. Minhas manias, minha língua, meu lar, meus desejos. Meu rosto.
Fico pensando loucamente em quem eram meus ancestrais, lá na Itália e no Brasil. E antes de a Itália ser Itália e do Brasil ser Brasil, quem eram eles. Sou eu o resultado do cruzamento de todos eles. Sou uma parte tão pequenina do mundo, fisicamente e temporalmente.

Só o que posso fazer é continuar vivendo, onde quer que eu esteja, da melhor forma possível. Ser feliz, só por hoje, que assim o serei pela vida inteira (e pela continuação dela, aqui na Terra, com meus descendentes, e além dela).

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O país que eu escolhi

Tatuagem

Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem...

                        --Chico Buarque e Ruy Guerra--

Desejo louco de ficar no teu corpo, tingindo a tua carne com meus braços. Plantar minhas unhas em ti, roçar meus cílios em tua fronte. Fazer das tuas mãos, meu leme e dos teus olhos, guias. Escalar teus ombros e conquistar tuas costas largas. Beijo a beijo traçar teu mapa. Desvendar teus vales e montanhas, as serras e baías, os campos e todos os teus tesouros. Lavrar tua terra, pouco a pouco, arando a pele com meus dedos. Plantar-me em ti. Colher teu suor. Florescer em ti. Morrer sobre a cama, exausta, para depois renascer.

Um país todo não se descobre em um dia. Os aventureiros vêm e, palmo a palmo, pouco a pouco, desvelam as riquezas da terra e as tomam para si. Alegres com suas conquistas, como meninos querendo-se homens. Orgulhosos. Não cabem em si ao tomar nas mãos delicada pedra preciosa ou brilhante metal. Assim também eu, exalto-me em minhas expedições sobre teu corpo moreno.

Depois de tão recompensadora tarefa, cravo em ti meus olhos, bandeiras amendoadas e tremulantes. Por um momento, o infinito é meu lar. Meu país é um moreno, adormecido em berço esplêndido, aninhado em meus braços.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Carrego seu coração comigo

Segue uma tradução que fiz do poema "i carry your heart with me(i carry it in my heart), do poeta e.e. cummings. Como sempre, a tradução é uma atividade melancólica, porque sempre que relemos o texto traduzido, pensamos em mudar algo ou que poderíamos fazer melhor. O poema é singelo e tocante. Espero que gostem. Posto a versão original, seguida de minha tradução.

i carry your heart with me

i carry your heart with me(i carry it in
my heart)i am never without it(anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate(for you are my fate,my sweet)i want
no world(for beautiful you are my world,my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart(i carry it in my heart)

(e.e.cummings)

Carrego seu coração comigo
Rita Cammarota

carrego seu coração comigo (eu o carrego em
meu coração) nunca estou sem ele (aonde quer
que eu vá, você vai, minha vida; e o que só eu faço
é feito seu, querida)
não temo
destino algum (pois você é meu destino, meu encanto) não quero
mundo nenhum (pois linda você é meu mundo, minha verdade)
e você é o que a lua sempre quis dizer
e você é tudo o que o sol cantar

e aí está o segredo que ninguém conhece
(aí está a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu da árvore chamada vida; que cresce
mais alto que a alma espera ou que a mente esconde)
e é o milagre que separa as estrelas na imensidão

carrego o seu coração (eu o carrego  em meu coração)

--tradução de Rita Cammarota--


quarta-feira, 22 de junho de 2011

Do que o mundo (ou eu) precisa

Paciência

Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para...

Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara...

Enquanto todo mundo
Espera a cura do mal
E a loucura finge
Que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência...

O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...

Será que é tempo
Que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo
Para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara...

            --Lenine--

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A nenhuma razão do amor

As Sem-Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor
                        --Carlos Drummond de Andrade--


Amor. Quem sou eu para falar de amor? Tantos poetas e escritores já o fizeram, querendo aprisioná-lo em definições. A definição é vazia. O amor só é tal  quando vivenciado. E cada um tem um jeito próprio de experimentar suas venturas e vicissitudes.

“Amor foge a dicionários e a regulamentos vários”. E que mania que as pessoas têm de racionalizar, de pretender escolher quem é digno de amor. “Fulana se apaixonou pelo homem errado”, “Mulher gosta mesmo é de cafajeste”. Frases estúpidas de quem quer trancafiar o amor no estereótipo príncipe encontra princesa e vive feliz para sempre com ela.

A vida não é assim. Não é cor de rosa. Apaixonei-me por um cara que não gostava de mim. Então meu amor não valeu? Foi em vão? Não. Meu amor valeu muito, porque partiu de mim. Se ele não experimentou o amor em todos os sorrisos e lágrimas, eu vivi. Como diz o sábio poeta: “amor é dado de graça e com amor não se paga”. Eu amei. E tantos outros me amaram sem que eu lhes pudesse devolver à altura seu carinho. Os desencontros acontecem todos os dias. Acontece.

Hoje em dia, há quem valorize o amor monogâmico, há quem seja poliamoroso. Há tantas formas de amar. O amor romântico vem caindo, apesar de as comédias românticas apostarem nele filme sim, outro também. Existe quem ame platonicamente.

E nenhum deles precisa ser correspondido para existir. Uma psicóloga me disse: “a gente acha que o amor vem por causa do outro, mas vem de nós mesmos. Por isso, todos se recuperam após um término e voltam a amar”.

É isso, o que eu posso desejar é amor, é que se ame a cada dia. Nem sempre o sentimento será correspondido, nem sempre a relação durará. Nada disso o desvaloriza. Termino o texto com um verso de Ferreira Gullar: “o amor é difícil, mas pode luzir em qualquer ponto da cidade”. Só espero que este ponto da cidade seja o meu.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A última flor do Lácio

A última flor do Lácio (Olavo Bilac)
Última flor do Lácio, inculta e bela
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Pronominais (Oswald de Andrade)
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro


Resolvi escrever este texto em honra da minha bela língua portuguesa. Não a ensinada na escola, mas a falada todos os dias pelo povo. Alguém me acusará de ser contra a norma culta, dirá que a língua escrita tem primazia sobre a oral, como insistem os leigos. A modalidade escrita tem muita importância, assim como padrão culto,  e tratarei dela em outro post.

Homenageio agora a oralidade, por ser este o aspecto mais dinâmico da língua. É o idioma uma manifestação social e cultural da sociedade, o modo como seus indivíduos comunicam-se entre si. A sociedade muda, a língua muda, evolui com as transformações. E, mesmo assim, há quem torça o nariz às transformações ao dizer que a língua está decadente, ninguém sabe mais falar corretamente, importam-se palavras. Geralmente, essas reclamações vêm de gente que sequer estudou português além dos bancos da escola.

Torcem o nariz, sem saber de onde a língua portuguesa se originou. Nosso idioma não nasceu dos oradores romanos, de Cícero, de Horácio, nem do latim literário. Nasceu com o povo iletrado ou pouco letrado. Sabe aquelas pessoas que falam “nós pega o peixe”? Pois é, assim nasceu o português. Com os trabalhadores, comerciantes, dia após dia. Por isso o poeta parnasiano Olavo Bilac a qualificou de inculta.

A variedade do Latim que originou o português é chamada por muitos de Latim Vulgar, por não ter sido ensinado nas escolas, mas falado pela maioria da população. Cabe lembrar que o latim vulgar era um conjunto de variantes, haja vista o tamanho do império romano. Foi desse aspecto do latim que surgiram o francês, o espanhol, o português, o romeno. O português é a mais jovem das línguas neolatinas, daí ser conhecido como  a última flor do Lácio.

Escrevo este texto porque a riqueza da língua não está só nos livros, indispensáveis para conhecermos o idioma, mas limitados pela norma culta. A beleza da língua é ser um organismo vivo, não-estático, agraciado e enriquecido pelos nativos do idioma. A graça são as variedades regionais e, por que não, sociais, escondidas pela gramática normativa. No inglês britânico, existe o cockney, falado por operários; sendo, portanto, uma variante social. É mais feia ou inútil que as outras? Não, é diferente, mas compõe a língua inglesa tanto quanto o BBC English, apesar de não ter o mesmo prestígio. Acrescenta à língua.

Acrescentam também à língua os empréstimos lingüísticos, tão criticados por alguns. Esquecem-se eles de que é natural a incorporação de novos vocábulos, especialmente aqueles que ainda não existem no idioma. Esquecem que o próprio português é uma miscelânea devido às invasões que Portugal sofreu e à convivência com povos vizinhos. E o português tem riquíssimas influências africanas, francesas, árabes e européias.

Quero viver o português, o português diário, rico, seja ele recitado em poemas, esteja numa mesa de bar ou com minha família. O português que evolui, que, ainda bem, não é estático ou mumificado como querem alguns. Que muda, conforme os ventos sopram e cujas mudanças poderão ser incorporadas, sim, à língua escrita. Amo-te, flor do Lácio!  Ainda que inculta, és muito bela.

domingo, 5 de junho de 2011

A difícil arte de perder

Uma arte
A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

            --Elizabeth Bishop, tradução de Paulo Henriques Britto--

Perder. Palavra dura, doída. Até suas sílabas arranham a garganta. É difícil lidar com perdas, em qualquer idade que ocorram. Amo este poema, porque trata do assunto de uma forma quase trivial. E não é que é mesmo? Tudo se perde, em diferentes momentos da vida e, mesmo assim, é complicado para quem sofre. Nunca se acostuma a ela.
Interessante como a poeta repete em cada verso “nada disso é sério”, “não é nenhum mistério”, quase como forma de se convencer de que perdas são naturais.

No princípio, as coisas mais banais, que nem sentimos quando se vão, um guarda-chuva, uma chave. O tempo gasto fazendo nada. O Rio de Janeiro ganhou muitos guarda-chuvas por minha causa, esquecidos em táxis, ônibus, até salas de aula.

Tantas coisas perdi. Talvez a primeira dolorosa tenha sido a infância, a inocência das brincadeiras, o dia todo me divertindo no play e só subir para jantar. Polícia e ladrão, queimado, pique-parede, casinha. Perda convertida em saudade. Gostoso de lembrar o rir-à-toa, os ataques de bobeira na escola, até a encheção de saco dos professores.

Mais tarde, jovem adulta, perdi um amor, foi barra. Por muito tempo, senti como uma incompletude em mim. Acostumei-me depois disso a rir chorando (ou a chorar rindo?). Até que a dor se acomodou e voltei a me sentir inteira.

Uma querida amiga minha sofreu duas perdas mui pungentes. A morte da mãe, há alguns anos, e a da avó, semana retrasada. Escreveu um lindo texto em seu blog, talentosa que é com a palavra poética. Genialmente, ela diz “conto desconsolos a mais com copos de arroz a menos”. Não imagino a dor pela qual ela passou, mas sei que vou passar.  
E, assim, apesar da dor, todos renascem após cada episódio inesperado.
Aprende-se a suportar a ausência.
E tanto mais se perde. Emprego, cidade, amores, ilusões, sonhos.

Até a perda última, para a qual (quase) ninguém está preparado: a morte, única certeza com a qual nascemos. Lembro até o filme “O Auto da Compadecida” com o discurso tragicômico do personagem Chicó sempre que alguém falecia: “Ele se encontrou com o único mal irremediável, aquilo que é marca da nossa estranha existência sobre a Terra, que junta tudo que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.

Não tenho moral do texto, não tenho palavra de consolo. Até porque o consolo da perda não está em palavras. Está no silêncio, no tempo, num abraço, nas lágrimas. O conforto é que, como diria Bishop, “não há nenhum mistério”. A pessoa perde, sofre, sobrevive, renasce. Talvez a grande vantagem da perda seja isto mesmo: o renascimento.

sábado, 4 de junho de 2011

Espelho meu, por que feres?

Mulher ao espelho 
Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

                        -- Cecília Meireles --


Em primeiro lugar, quero dizer que vaidade e aparência são importantes. A vaidade é o cuidado consigo e a apresentação diante do mundo é essencial, pois é como os indivíduos são primeiramente conhecidos. Ninguém quer se mostrar ao outro como alguém sem bom senso.
Passei a adolescência toda e até o fim da infância preocupada com aparência. Talvez isso me leve a escrever sobre o tema. Sentia-me feia, fui uma adolescente esquisita e sempre me cobrei. Por isso, esta reflexão também é direcionada a mim, sem hipocrisia. Importo-me com isso, mas de forma crítica.

Que todas queiram ser belas, não há problema. Nem com a vaidade. A questão é quando esta vaidade impede de apreciar quem somos pelas nossas peculiaridades. Só para ficar na estética: as revistas femininas reproduzem o padrão da moda, as masculinas seguem. Só esquecem que 90% da população das mulheres não se encaixa nesse perfil. Gisele é linda – quem dirá que não? –mas é linda porque naturalmente é assim. Cuida-se, claro, mas tem o biótipo procurado nas modelos.

Dizer isso é chover no molhado, mas não impede milhões de mulheres de entrarem na faca em busca de um corpo que não nasceram geneticamente para suportar. Quantas mortes e infelicidade seriam evitadas se aprendêssemos a nos amar, não só pela aparência, mas por nossas qualidades? Auto-estima não é gostar de se ver no espelho apenas. Auto-estima é, ora bolas, você se estimar, se respeitar enquanto pessoa.

Não é necessário chegar ao extremo da cirurgia. Diga-me uma mulher que está satisfeita com seu corpo ou consigo mesma. Raríssimas responderão sim. Todas mudariam algo, mesmo sendo naturalmente bonitas. Algo está errado. Algo está errado quando não se pode ser como é, porque não é o suficiente para sentir-se bem.

Na poesia da minha musa Cecília Meireles, ela diz “Só não pude ser como quis”. Que existência infeliz a da pessoa que não se aceita como é, não consegue ser como quer. Ou melhor, que tentou de tudo, foi loira e morena, Maria e Madalena, só não pôde ser ela mesma. Não bastava.

Se essa mensagem é negativa para adultos, que dirá para crianças. Formando sua auto-imagem conforme esses padrões. Meninas desde cedo super preocupadas com aparência e os pais achando “bonitinho”. Depois, a mesma sociedade tachará de imbecis e fúteis as adolescentes anoréxicas e bulímicas. Não cheguei a esse ponto, mas fui muito infeliz na adolescência, primeira juventude, por conta de aparência. Sinto profunda compaixão por essas meninas, buscando um padrão irreal, que só cultivaram excessivamente porque, ora, a beleza exterior é supervalorizada.
Essa supervalorização é preocupante. Que qualidades estão sendo postas em primeiro lugar na cabeça de uma criança? Estética ou caráter? Corpo bonito ou determinação? É muito claro o privilégio ao exterior. É só abrir qualquer revista ou jornal. Que tipo de mulher é valorizada, clicada e por que. Cabe a nós, mulheres, questionar esse padrão, sem deixarmos de nos cuidar por nós mesmas, pela nossa saúde e existência.

Parece que falando desse jeito eu não uso maquiagem ou vestidos. Não sou. Sou feminina, gosto de moda, malho e, se pudesse, usaria vestidos todo dia, mas nunca perco de vista que jamais serei uma modelo, não tenho 1,80m, não sou magrela. Contudo, não posso deixar de me apreciar, não só pelo meu corpo, mas principalmente por quem eu sou. Sou honesta, sincera, amiga, trabalhadora, determinada e principalmente amada. E são essas qualidades que vão me sustentar quando eu envelhecer, não a plástica. E você? Tem expirado buscando-se no espelho?

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Traduzir-me

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

          --Ferreira Gullar--

Este poema sempre me marcou. Parece que fala sobre mim. Sobre todos, na verdade. O paradoxo que é ser humano, de ser bom e amigo e ser capaz de atrocidades e mesquinharias ao mesmo tempo. Acho, porém, que o poema vai além do paradoxo bem/mal, sequer toca profundamente nele.
Fala do paradoxo humano de viver, de a cada dia se descobrir e se espantar com si próprio, de ser parte de um grupo ao mesmo tempo não se sentir parte de nada, estranho e só. Assim me sinto, parte da multidão inominada, da “massa da cidade” e, ao mesmo tempo, tão minha que nunca ninguém realmente me soube. Noto meu profundo egoísmo neste texto. Acho que escrever um blog é transformar a parte vertigem em linguagem, tornar a estranheza e a solidão públicas. Quero com ele me expressar, a partir de textos de meus poetas/compositores/autores preferidos, que tantas vezes me delineiam melhor do que eu poderia fazer. E desabafar quando eu quiser. E falar besteiras também.
Que a minha parte linguagem me ajude!!!
Quem quiser ler minhas bobagens, bem vindo!
Licença Creative Commons
Este obra de Rita Cammarota, foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.